A parceria entre professor titular e educador bilíngue: novos desafios, novas possibilidades

Por Monique Spasiani | Assessora Pedagógica Be – Bilingual Education

Nos últimos anos, tem sido cada vez mais crescente o (re)conhecimento sobre o bilinguismo e sobre a Educação Bilíngue em nosso país, o que impulsionou a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Plurilíngue no Brasil (Parecer CNE/CEB nº 2/2020, aprovado em 9 de julho de 2020) pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), trazendo valiosas definições e regulamentações para essa área educacional. 

No decorrer de suas páginas, o Parecer disserta sobre a escola bilíngue e sua carga horária, a formação de professores bilíngues, a organização curricular, a avaliação e dá outras providências. No que tange especificamente à definição de escola bilíngue, ele postula:

Definição de Escola Bilíngue segundo o Parecer Nacional CNE/CEB nº2/2020

Parecer Nacional CNE/CEB nº 2/2020Definição de Escola Bilíngue “As Escolas Bilíngues se caracterizam por promover currículo único, integrado e ministrado em duas línguas de instrução, visando ao desenvolvimento de competências e habilidades linguísticas e acadêmicas dos estudantes nessas línguas.”
Fonte:  Elaborado pela autora (2022) com base no Parecer Nacional CNE/CEB nº2/2020.

Percebe-se que o documento entende a escola bilíngue como o ambiente em que o currículo educacional é desenvolvido, de forma única e integrada, por meio de duas línguas de instrução. Tal currículo deve possibilitar o desenvolvimento não só das habilidades linguísticas dos estudantes, mas também das habilidades acadêmicas. Em consonância com esta e com outras determinações trazidas pelo Parecer, isso significa dizer que as disciplinas propostas devem englobar as habilidades e competências previstas pela BNCC para aquela componente curricular específica e para aquele segmento escolar. Assim, o foco é duplo: em língua e em conteúdo. 

Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Currículo Be 

Familiar à maioria dos profissionais da educação, a BNCC é um documento normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens fundamentais que devem ser oportunizadas aos estudantes ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica. Esse documento deve guiar todos os currículos dos sistemas de ensino do país – públicos ou privados, monolíngues ou bilíngues. 

O Be – Bilingual Education é pioneiro na implantação do ensino bilíngue com essa organização curricular completa, oferecendo as disciplinas de Science, World Cultures & Geography e Language ministradas em língua inglesa, em completa consonância com a BNCC e de forma integrada às demais disciplinas do currículo. 

Dada essa integração, algumas escolas mantêm o professor titular (professor responsável pelas disciplinas em língua portuguesa) em sala de aula durante o desenvolvimento das componentes curriculares da Educação Bilíngue, o que pode trazer intensos desafios, mas também excelentes possibilidades. 

É fato que ambos os profissionais – professor titular e educador bilíngue – devem atuar na Educação Bilíngue como facilitadores da aprendizagem, não mais como transmissores de conhecimento como até então eram compreendidos. Com uma perspectiva de educação contemporânea que assume a importância de um trabalho colaborativo, os educadores deixam de ser os detentores do conteúdo a ser apresentado e passam a ser os mediadores das práticas dos estudantes, que terão a oportunidade de criar hipóteses, investigar, experimentar, compartilhar e construir o conhecimento coletivamente. Sob o signo das metodologias ativas, acredita-se que esse novo perfil profissional seja mais condizente com o estudante deste século, que não mais vê propósito em modelos tradicionais de ensino que os colocam em posição passiva. 

Segundo Marc Prensky (2001), os estudantes do novo século estão radicalmente mudados, não sendo mais as pessoas que o sistema educacional vigente foi destinado a ensinar. O autor nomeou esta geração de Nativos Digitais, garantindo que as mudanças se concretizam não somente no aumento do uso de ferramentas digitais, mas na maneira como os estudantes de hoje pensam e processam a informação. 

Professor titular e educador bilíngue: uma parceria poderosa 

Com o professor titular e o educador bilíngue presentes na mesma sala de aula e sendo ambos sujeitos mediadores do conhecimento e da aprendizagem da língua adicional, é possível que pensemos em algumas atribuições desses profissionais, que não se esgotam aqui e podem se adequar à realidade de cada escola/contexto. 

É claro que o educador bilíngue será o principal responsável pela condução e pela organização das componentes curriculares as quais ministra, sobretudo pela proficiência na língua adicional e por estar em constante formação e reflexão sobre esse modelo de educação. No entanto, há diversas maneiras de o professor titular contribuir com o seu trabalho e de ser mais um sujeito ativo na construção de uma Educação Bilíngue de qualidade, que é integrada e objetiva impactar positivamente toda a comunidade escolar. 

Professor titular como colaborador da rotina escolar

De forma geral, sabe-se que a rotina escolar dos estudantes é composta por práticas sequenciais diversas, a depender do segmento educacional em que eles estão inseridos. A primeira etapa é o momento de entrada, em que a criança se dirige à sala de aula e se organiza para começar mais um dia de intensos aprendizados. Após o início das atividades, seguem-se momentos múltiplos, como de histórias, conversa, brincadeiras, disciplinas previstas para aquele dia, lanche, higiene, aulas especializadas (como Educação Física, Artes ou Música), laboratório, parque, entre outros. Por fim, chega a hora da saída, em que o estudante guarda o material e vai ao encontro da sua família. 

De maneira específica, para além da rotina escolar, percebe-se que cada disciplina, cada professor tem sua rotina, que se constrói à medida que ele vai vivenciando essa dinâmica. Assim, o professor titular pode ser um verdadeiro colaborador desta rotina interna, o responsável pela entrega de materiais, pela organização dos alunos, pelo manejo da sala de aula ou por outras atividades, das mais simples às mais complexas, que ele mesmo pode identificar e entender como importantes ao longo do processo. 

Além disso, quando se fala especificamente sobre a componente curricular Science do Currículo Be, tem-se uma dinâmica predominantemente baseada em uma metodologia de ensino ativa chamada Project Based Learning (PBL), que objetiva associar o aprender ao fazer. O PBL se baseia na construção do conhecimento de maneira coletiva, fugindo do modelo convencional no qual o professor ensina uma matéria e os alunos mostram o quanto aprenderam a partir de uma avaliação final. 

Então, para que as crianças tenham a oportunidade de investigar, experienciar e descobrir as respostas por elas mesmas por meio do PBL, o Currículo Be propõe diversos experimentos que as encorajam a colocar a mão na massa e a atuar como verdadeiros cientistas. De fato, desenvolver práticas como essas, que pressupõem organização espacial e execução completamente diferentes dos métodos tradicionais de ensino, é mais desafiador e requer planejamento prévio. Mas, com a colaboração do professor titular como um segundo adulto em sala de aula, essa metodologia pode ser mais fluida e trazer ganhos imensuráveis para o processo de ensino-aprendizagem da língua adicional. Para este profissional, o trabalho coletivo possibilita momentos ricos, que trarão muitas evidências sobre comportamentos e formas de aprendizagem dos estudantes, impactando diretamente nas práticas pedagógicas.

Professor titular como interlocutor, em língua portuguesa, das habilidades e competências

Já que um de nossos objetivos com a Educação Bilíngue é expor os estudantes ao máximo de língua adicional possível para que a aprendizagem ocorra de forma mais natural, é coerente que a língua adicional predomine não só na fala do educador bilíngue, mas também nos materiais de apoio e nos registros, mesmo que haja manifestações em língua portuguesa pelos alunos e/ou a necessidade de um reforço em português pelo professor titular. 

Assim, com planejamento e intencionalidade pedagógica, o professor titular é convidado a contribuir em língua portuguesa com toda a sua expertise e experiência no assunto, com vistas a sanar as dúvidas dos estudantes, garantir que a mensagem seja transmitida às crianças que tenham mais dificuldade, colaborar com algum ponto que ainda não tenha sido mencionado e/ou aprofundado, etc. 

Além do mais, esse cenário pode contribuir para que a Perspectiva Translíngue esteja cada vez mais presente nos espaços educacionais bilíngues. De forma generalista, a Perspectiva Translíngue – estudada por teóricos como Canagarajah (2013), García e Yip (2015), García e Li Wei (2014), entre outros – relaciona-se à valorização de várias línguas no processo de ensino-aprendizagem de falantes bi/multilíngues. Para Rocha e Maciel (2015), ancorados em Canagarajah (2013): 

[…] a abordagem translíngue não percebe as misturas como uma forma de uso incompleto, deficiente ou indevido de uma língua, como geralmente encontra-se subentendido pela ideia de alternância de código (codeswitching), por exemplo, mas as validam como práticas translíngues, emergentes da prática e, assim, marcadas pelas “ideologias de grupos ou comunidades específicas”, embora não homogêneas, de falantes (p. 425).

Deste modo, o desempenho linguístico e a mistura de línguas de estudantes bilíngues são percebidos de forma distinta, não como um desvio dos padrões ou simplesmente pertencente a esta ou àquela língua, mas como um recurso capaz de aprimorar todo o repertório linguístico desse indivíduo (GARCÍA e LI WEI, 2014; GARCÍA e YIP, 2015). 

Professor titular como integrador das componentes curriculares

Na área educacional, com o objetivo de abandonar práticas que estabelecem fragmentação curricular e que promovem pouca, ou nenhuma, conexão com a realidade dos estudantes, fala-se muito em interdisciplinaridade. Com o professor titular presente em sala de aula nas componentes curriculares da Educação Bilíngue, tem-se um terreno fértil para que esse conceito possa ser realmente colocado em prática e para que o estudante se forme dentro da perspectiva da educação integral, e não segmentada. 

Isso porque esse professor está acompanhando o desenvolvimento dos alunos em língua adicional e está em contato diário com todas as temáticas e conteúdos que são com eles desenvolvidos. Assim, é possível que ele faça o movimento de levá-los também às outras disciplinas do currículo em que ele atua, instituindo não só assuntos, mas também práticas, estratégias e metodologias comuns a todas as áreas.

Professor titular como aprendiz, com o auxílio de recursos de apoio

Num primeiro momento, pode ser que haja um estranhamento do professor titular por ter de contribuir com uma disciplina ministrada em um idioma que, muitas vezes, ele não tem proficiência suficiente. Nesse sentido, é preciso que haja uma sólida conscientização acerca do processo de aprendizagem de uma língua adicional, enfatizando que há diversos recursos para além da língua que podem apoiar sua compreensão e seu entendimento durante as aulas. Assim, da mesma forma que esses recursos servem de base e suporte aos estudantes ao longo do processo de aprendizagem de uma língua, eles podem servir de base e suporte para a atuação do professor titular também. 

É preciso que saibamos que a aprendizagem de uma língua adicional não é um ato passivo; é sempre um processo de troca entre o aprendiz e o seu meio. O aprendiz entra em contato com a informação, mas também traz suas experiências e seu conhecimento de mundo. O que o aprendiz leva para o seu contexto escolar é tão importante quanto o que o contexto escolar traz para ele. 

Em adição, saber uma língua não é saber letra-por-letra, palavra-por-palavra. Você conhece TODAS as palavras da língua portuguesa? Certamente não. Como falantes do português, conhecemos uma parte do vocabulário da nossa língua, mas mesmo assim conseguimos ler textos em português, não é? Com a língua adicional ocorre o mesmo. Não precisamos saber todas as palavras de um texto para entendê-lo, por exemplo. Devemos, sim, saber aplicar as estratégias corretas de leitura para tirarmos, de um texto, todas as informações de que precisamos. 

Ainda assim, mesmo que saibamos todas as estratégias e dominemos todas as teorias relacionadas à Educação Bilíngue, é preciso que ambos os professores se pautem em questões que vão muito além da racionalidade e da técnica. Há de se ter alegria, amor e abertura ao novo sempre, na certeza de que só assim é possível uma prática pedagógica progressista e de sucesso. Nas palavras de Paulo Freire (2004):

É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa ao fatalismo, identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógico-progressista (FREIRE, 2004, p. 120).

Bem, essas são algumas frentes na qual o trabalho coletivo entre o professor titular e o educador bilíngue certamente influenciará positivamente na formação integral dos estudantes. Você conhece alguma outra maneira de fazer essa união ser cada vez mais poderosa?


SOBRE A AUTORA

Monique Spasiani

Licenciada em Letras – Português/Inglês, pedagoga e doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com pesquisa em Educação Bi/Multilíngue de surdos e ouvintes. É especialista em Libras e Educação de Surdos pela Universidade Norte do Paraná (UNOPAR) e em Ensino de Inglês para Crianças pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem experiência como professora de inglês, educadora bilíngue e coordenadora pedagógica. Atualmente, é assessora pedagógica no Be – Bilingual Education.


REFERÊNCIAS

BRASIL, MEC/CNE. Parecer CNE/CEB No 2/2020. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/setembro-2020-pdf/156861-pceb002-20/file, Acesso em: 11 ago. 2020. 

CANAGARAJAH, S. Translingual practice. New York: Routledge, 2013.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 56. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

GARCÍA, O.; LI WEI. Translanguaging: Language, Bilingualism and Education. New York: Palgrave Macmillan. 2014.

GARCÍA, O.; YIP, J. Introduction: Translanguaging: Practice Briefs for EducatorsTheory, Research, and Action in Urban Education4(1). 2015. 

PRENSKY, M. Digital Natives Digital Immigrants Part 1, On the Horizon, Vol. 9. 2001.

ROCHA, C. H.; MACIEL, R. F. Ensino de língua estrangeira como prática translíngue: articulações com teorizações bakhtinianas. DELTA [online]. 2015, vol.31, n.2, pp.411-445. 2015. 

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