Lição de casa: mocinha ou vilã?

Por Lígia Duran, assessora pedagógica Be – Bilingual Education

A aplicação da lição de casa (ou tema de casa, dever de casa, para casa, tarefa e outras tantas nomenclaturas Brasil afora) vem sendo um tema polêmico na área da educação desde seus primórdios. Há controvérsias quanto à origem dessa expressão, mas acredita-se que Johann Gottlieb Fichte seja o criador do conceito de “lição de casa”. Filósofo conhecido por ser um dos principais representantes do idealismo alemão, Johann teve uma relação importante com os sistemas Volksschule e Realschule. A Volksschule foi criada para fornecer uma educação básica e obrigatória a todas as crianças na Alemanha, enquanto a Realschule foi criada para fornecer uma formação mais avançada e técnica, preparando os estudantes para a escola profissional ou para continuar seus estudos em uma escola superior. O dever de casa fazia parte da Volksschule.

Nos EUA, Horace Mann parece ter sido um dos precursores da prática nas escolas, tendo documentado e importado a abordagem, entre outras, após uma temporada na Europa pesquisando o sistema de ensino público na Prússia. A ideia desse educador, político e abolicionista era reforçar a aprendizagem dos estudantes por meio da tarefa de casa.

É importante dizer que, independentemente de sua verdadeira origem, a lição de casa passou, ao longo dos anos, por diversos momentos controversos. Houve grupos que a defenderam, acreditando que ela seria importante para reforçar o aprendizado, enquanto outros a repudiaram, argumentando que ela poderia ser prejudicial para as crianças. Sob esse argumento, a lição de casa foi proibida em alguns países. 

Afinal de contas, qual o papel da lição de casa na Educação Bilíngue?

Como em toda e qualquer abordagem educacional, a eficácia da Educação Bilíngue vai depender do entendimento e dos encaminhamentos dado pela escola e, consequentemente, pelos educadores. Com a lição de casa não é diferente. Ela pode ser um instrumento potente de aprendizagem que gera autonomia, desenvolve uma postura de estudante e coloca o estudante no centro da própria aprendizagem. Além disso, o exercício ativo de fazer as lições de casa possibilita maior tempo de contato com a língua adicional e com outras culturas. Sem contar que é um bom momento para as famílias acompanharem de perto o trabalho proposto pela escola e o aproveitamento individual do estudante acerca dessas propostas. Para tanto, é imprescindível que a concepção do educador em relação ao instrumento não seja aquele de castigo, de punição ou, como alguns acreditam, de “preencher os momentos vagos” dos estudantes de maneira “útil”. A lição de casa deve ser vista como uma ferramenta para expandir o conhecimento e estabelecer uma relação entre o que é aprendido e o que é vivido.

O que deve ser considerado ao elaborar uma lição para casa na Educação Bilíngue?

Ainda que os preceitos básicos para a elaboração e a atribuição de lições de casa sejam comuns a qualquer abordagem, na Educação Bilíngue algumas particularidades podem ser entendidas. Entre elas: 

  • Os educadores bilíngues devem ter em mente que a língua adicional pode ser um gatilho de traumas e desafios para os familiares envolvidos no processo. Então, o ponto de partida é garantir que o objetivo seja claro e que o encaminhamento feito na aula que antecede a lição seja adequado e suficiente para que o estudante execute a tarefa autonomamente. Comunicados e orientações específicas às famílias, assim como propomos nas Cartas às Famílias disponíveis para as escolas parceiras do Be, são de grande valia nesse momento.
  • A comunicação objetiva também é essencial. Escrever “Página 14” na agenda não é um bom exemplo de comunicação para tarefas de casa. Tal comunicação deve ser completa e clara: transmitir o que foi feito previamente em sala, o objetivo da tarefa, onde podem ser encontrados os recursos de suporte para a execução da tarefa. Tudo isso auxilia na compreensão do exercício e evita a ansiedade, tanto dos estudantes quanto das famílias. Cabe ao educador levar em consideração os diferentes estágios na Zona de Desenvolvimento Proximal (Vygotsky, 1984) dos estudantes e oferecer suporte adequado a cada um deles.
  • O tempo médio que o estudante vai levar para fazer a tarefa também é um ponto importante. O objetivo é aprender com motivação. Por isso, os educadores devem evitar tarefas muito longas ou impraticáveis no prazo dado. Eles devem se lembrar de que a vida dos estudantes e de suas famílias é composta de outros compromissos além da escola.
  • É crucial que os educadores deem devolutivas às atividades feitas em casa que ultrapassem o famoso “visto no caderno”. Se o objetivo do envio da lição de casa é contribuir para o desenvolvimento continuado do estudante, torna-se necessário planejar e organizar momentos de reflexão, troca, correção e análise dessas atividades. Existem diferentes formas de fazer isso e que podem se tornar mais uma oportunidade de aprendizagem e aprofundamento. Por exemplo, a correção aos pares, na qual, juntos, os pares revisam e corrigem aquilo que precisa ser reformulado.

E se, mesmo assim, o estudante não conseguir desenvolver a tarefa autonomamente? 

As práticas podem ser variadas, mas o ideal é que a lição volte para a escola sem estar concluída. Dessa forma, o educador tem a oportunidade de explicar novamente a questão e garantir que o objetivo da tarefa seja contemplado, oferecendo suporte adequado em sala de aula sem que haja nenhum prejuízo para o estudante.

O que pode ser proposto como lição de casa na Educação Bilíngue?

No Currículo Be, trabalhamos com os componentes curriculares Language, Science e World Cultures and Geography. A seguir, trago alguns exemplos possíveis de lições de casa nesses componentes curriculares:

  • Nas aulas de Science: uma pesquisa sobre um tema a ser trabalhado na aula que antecede ou que sucede a aula. Nesse caso, o estudante pode trazer uma descoberta em forma de imagem ou parágrafo para apresentar à turma, dando sua contribuição para a Discoveries Wall, uma parede que reúne aquilo que os estudantes descobriram sobre o tema antes ou depois de abordá-lo.
  • Nas aulas de Language: uma prática extra sobre alguma estrutura que foi trabalhada previamente em sala, para retenção. Aqui podem entrar jogos virtuais, cruzadinhas, quadrinhos, etc. Qualquer elemento no qual os estudantes possam perceber o uso real daquela estrutura ou vocabulários específicos. 
  • Nas aulas de World Cultures and Geography: uma enquete com os familiares sobre determinado tema. Por exemplo, imigração x emigração.  Quantos imigrantes há na família e de que país vieram?  Ou quantas pessoas da família deixaram o Brasil para morar em outro país? Qual foi a razão dessa mudança?

Certamente essas ideias poderiam ser um artigo à parte. Afinal, muitas são as possibilidades de transformar a lição de casa – muitas vezes vista como vilã – em uma outra ferramenta, que colabora para a aprendizagem e faz com que ela ultrapasse os muros da escola. 

A lição de casa pode ser o grande elo entre o que se aprende e o que se vive, e se relaciona com muitas experiências que a sala de aula bilíngue promove. Além disso, as lições de casa contribuem para uma aproximação mais efetiva das famílias quanto ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes; promovem trocas significativas entre estudantes e suas comunidades; e se aproximam de um dos objetivos mais importantes do nosso trabalho com os estudantes: o amor por aprender.


Sobre a autora

Lígia Duran


Assessora pedagógica do Be – Bilingual Education. Graduada em Letras pela Fundação Santo André (SP). Pós-graduada em Educação Infantil pela UMESP e em Metodologias e Práticas para o Ensino Bi/Multilíngue pelo Instituto Singularidades de SP. Tem 22 anos de experiência em sala de aula no ensino de língua inglesa, cinco deles na área da Educação Bilíngue.

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