Por Pedro Brandão | Coordenador Geral da Equipe Pedagógica Be
É notório que a educação brasileira tem passado por transformações substanciais. Sabemos que não se faz educação do mesmo modo como ela se dava quando nós éramos estudantes. Ainda assim, podemos perceber que a educação moderna traz consigo muito do formato tradicional praticado antigamente.
E na educação bilíngue? Acontece a mesma coisa? Trago neste artigo algumas reflexões e alguns caminhos possíveis para esclarecer por que continuam frequentes certos questionamentos sobre o uso da língua de nascimento durante o processo de aprendizagem de uma língua adicional.
É recorrente a preocupação de famílias, estudantes, educadores e gestores quanto ao uso da língua portuguesa nas aulas de inglês ou nos componentes curriculares de um Currículo Bilíngue. Você possivelmente já ouviu pautas como: “Mas meu filho só fala português na aula do bilíngue”; “A turma está reclamando que você usa muito português durante as aulas de inglês / do bilíngue”. Ou ainda educadores bilíngues que dizem: “Meus estudantes insistem muito em usar português durante as minhas aulas de inglês / do bilíngue”.
Acredito que muito dessa recorrência se dá pela pouca oportunidade de reflexão sobre os porquês dessa questão, bem como pela falta de conhecimento teórico e, consequentemente, de segurança para explicar às famílias e a toda a comunidade escolar que isso acontece naturalmente durante o processo de aquisição de uma língua adicional. No entanto, essa naturalidade não deve tornar-se um hábito na vida acadêmica. Para isso, existem técnicas e estratégias que permitirão, inclusive, conduzir o uso da língua de nascimento como um recurso pedagógico e didático favorável ao desenvolvimento da língua adicional.
Quais são alguns conceitos-chave neste caso?
Apesar de os estudos e discussões sobre bilinguismo e educação bilíngue no Brasil serem mais latentes nos últimos anos, precisamos ainda de muita preparação e formação sobre eles.
Para fins deste artigo, gostaria de ressaltar brevemente dois conceitos cruciais para entender a interação entre as línguas de nascimento e adicional em contextos de ensino bilíngue. Como esses conceitos são bastante presentes no desenvolvimento linguístico de seres bilíngues, compreendê-los nos possibilita maior agência, tanto nos espaços educacionais quanto na interação formativa com as famílias.
Para compreender tais conceitos, reforço aqui a ideia de Língua de Nascimento como sendo aquela que compõe o repertório linguístico primário da criança, com a qual ela tem mais contato desde seu nascimento. Por outro lado, Língua Adicional é aquela adicionada ao repertório linguístico da criança. Normalmente, quando falamos sobre educação bilíngue no Brasil, imaginamos o português como Língua de Nascimento e o inglês como Língua Adicional.
Translinguagem
Com isso esclarecido, vamos ao primeiro conceito que é o da translinguagem (do inglês “translanguaging”). Para Ofélia Garcia (2009), referência mundial e pioneira em muitos estudos sobre bilinguismo, translanguaging consiste “nas múltiplas formas de práticas discursivas através das quais o indivíduo bilíngue tenta fazer sentido e compreender os contextos relacionados a cada uma das línguas”.
Quando trazemos este conceito para observar os espaços de educação bilíngue, conseguimos compreender que os estudantes farão uso híbrido daquilo que conhecem em ambas as línguas (de nascimento e adicional), já que, assim, poderão comunicar melhor aquilo que pretendem. Isso acontece porque o estudante não está focado nas línguas em si, mas na prática dessas línguas. É como se, por meio da translanguaging, os estudantes pudessem acessar diferentes recursos linguísticos, o que naturalmente aumenta as possibilidades de interação com os outros e com os meios nos quais estão inseridos.
Code-Switching
Code-Switching é o segundo conceito em pauta. Ele se refere à alternância entre dois códigos linguísticos que um ser bilíngue faz naturalmente. É muito comum, por exemplo, que, mesmo tendo acesso e exposição à língua adicional de modo consistente e frequente, a criança não a utilize com pessoas que normalmente não interagem nessa língua ou que ela saiba que não compreendem essa língua.
Situações como essa são muito comuns em relatos de famílias preocupadas que seus filhos não estejam de fato adquirindo a língua adicional. Na verdade, esta alternância é comum e esperada no processo de desenvolvimento linguístico e diz muito sobre decisões (conscientes ou não) a respeito de qual língua é preterida naquele contexto com aquele interlocutor. Inclusive, Meisel (2019) sugere que as crianças bilíngues possam se utilizar da alternância entre as línguas que compõem seu repertório linguístico por algum tempo até definir o uso adequado de uma ou outra.
Certamente a abordagem desses conceitos e seus efeitos na formação de seres bilíngues podem dar vida a novos artigos aqui no blog, mas esta rápida descrição serve para nos lembrar de que precisamos aprofundá-los mais e mais.
Por que os estudantes usam tanto o português nas aulas bilíngues?
Assim como toda prática docente deve estar pautada em intencionalidades pedagógicas, há uma razão (ou algumas) justificando o uso de língua portuguesa em contextos de ensino bilíngue.
Um dos motivos mais comuns é o fato de a língua adicional ser uma novidade para o estudante ou para a escola. Assim, há que se ter um planejamento muito bem estruturado para orientar todos os envolvidos sobre como a educação bilíngue e o desenvolvimento do ser bilíngue se dão. Não estamos mais falando de uma proposta de ensino de língua que consiste na “decoreba” ou em exibições do uso da língua sem um contexto ou propósito maior. Logo, é um processo que se desenrolará diferentemente para cada um dos estudantes. Esse ponto parece ainda ser o mais difícil de ser entendido.
Outro fator que explica o uso excessivo da língua portuguesa nas aulas propostas pela educação bilíngue é a falta de repertório linguístico advindo do pouco contato com a língua adicional para além das aulas. Muitas vezes, as famílias, e até mesmo os agentes educacionais, esperam que a aquisição da língua se dê magicamente da noite para o dia, apenas com a exposição à língua durante as aulas.
Ainda que o planejamento de aulas em contextos bilíngues exija cuidados e pontos de atenção mais amplos, é importante que toda a escola promova possibilidades de contato com a língua adicional na sua rotina, de forma natural. O mesmo deve acontecer em casa e em outros contextos nos quais os estudantes estão inseridos. Nestes últimos, não esperamos que todos os ambientes mudem seu modus operandi para satisfazer o desenvolvimento bilíngue das crianças, mas hoje existem muito mais possibilidades de interagir com a língua inglesa. Por exemplo: internet, streamings, canções internacionais, etc.
Não menos recorrente está o fato de que, muitas vezes, há uma pressão despropositada para que as crianças “comecem a falar em inglês logo”. Diferentemente dos modelos de ensino de línguas mais tradicionais ou antigos, a educação bilíngue promove um uso autônomo e significativo da língua.
Isso quer dizer que não se propõe mais a memorização ou o uso descontextualizado da língua adicional. O entendimento agora é propiciar estratégias e práticas de uso real da língua, até porque conhecer um outro idioma não consiste apenas em falar nesse outro idioma. Neste sentido, é irrelevante que as crianças sejam expostas a demonstrações forçadas para compartilhar seu conhecimento de língua adicional com pessoas que normalmente não usam essa língua; ou ainda com pessoas que elas reconhecem como não falantes daquela língua.
Por fim, é importantíssimo que repensemos a relação de ensino e aprendizagem de línguas adicionais em contextos de educação bilíngue. Neles, o inglês será sempre uma das ferramentas utilizadas para a ampliação da visão de mundo, que, planejadas cuidadosamente com uma série de outros recursos e práticas pedagógicas, promoverão uma aquisição natural, impactando diretamente na interação das crianças com o mundo à sua volta em qualquer língua que componha seu repertório linguístico.
Sobre o autor
Pedro Brandão
Formado em Letras pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e pelo Marietta College (EUA). Especialista em Educação Bilíngue pelo Instituto Singularidades, com certificado CELTA pela Stafford House (UK). Educador há 15 anos, com experiência em docência, coordenação, assessoria pedagógica e administração escolar em centros de idiomas, escolas bilíngues e internacionais. Educador e formador de educadores em escolas de ensino básico, da Educação Infantil ao Ensino Médio.
Referências:
GARCÍA, O. Bilingual education in the 21st century: a global perspective. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009.
MEISEL, J. M. Bilingual children. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
Desafios e práticas na educação bilíngue / organização Antonieta Megale ; prefácio Anne-Marie Truscott de Mejía. – São Paulo : Fundação Santillana, 2020.